quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Estatuto da Igualdade Racial e as políticas raciais

ESTATUTO DA IGUALDADE RACIAL: 'LUTA SOCIAL OU LUTA DE RAÇA?' *
Entrevista com Mario Maestri


A versão do Estatuto da Igualdade Racial recém aprovada pelo Senado foi bastante discutida nas últimas semanas. Tratando-se de um daqueles temas amplamente abordados tanto pelos grandes veículos de comunicação, como também por aqueles menores, mais alternativos e com um viés à esquerda, nem por isso as opiniões suscitadas são capazes de consolidar um entendimento mais fundamentado de questão tão complexa.
 
Deparamo-nos os leitores, essencialmente, com a visão daqueles que defendem as políticas afirmativas de inclusão, em contraposição àqueles que não as vêem como positivas, na medida em que reforçariam a ‘racialização’ da sociedade brasileira. A defesa das cotas para negros em universidades é o tópico em que se concentram os maiores esforços dos primeiros, como forma de se contrapor minimamente às injustiças históricas e arraigadas em um país de passado colonial e escravocrata. Os críticos à racialização não têm, por sua vez, espaço amplo e diversificado o suficiente para a apresentação de seus argumentos,
 
O historiador Mário Maestri, entrevistado especial do Correio, amplifica os termos desse debate, tomando-o a partir da atual sociedade capitalista, uma sociedade dividida entre as classes ligadas ao capital e ao trabalho, e na qual se desenvolvem as relações sociais e as relações de produção. O historiador alerta para que as discussões estão sofrendo pesada influência das forças do capital, deixando na ‘penumbra a diferença de qualidade entre a luta anti-racista e a proposta da luta pela igualdade racial’.
 
Ainda segundo Maestri, para a ideologia da igualdade racial não haveria mal na existência de opressores e oprimidos, desde que ambos os segmentos se caracterizassem pelo equilíbrio étnico. Confira entrevista exclusiva a seguir.

Correio da Cidadania: Qual a importância da discussão sobre a igualdade racial e do Estatuto da Igualdade Racial, para regulamentá-la?
 
Mario Maestri: Trata-se de debate fundamental, até agora dominado pelas forças do capital e sofrendo sua influência, que tem mantido na penumbra a diferença de qualidade entre a luta anti-racista e a proposta da luta pela igualdade racial. O anti-racismo é luta democrática contra a discriminação na escola, no trabalho, na educação etc. É parte da luta geral, no aqui e no agora, contra os exploradores, pela extinção da sociedade de classes, base das opressões econômica, nacional, sexual, étnica etc. A luta anti-racista é parte do programa do mundo do trabalho, é mobilização democrática, progressista, revolucionária.
 
A proposta de igualdade racial propõe a existência de raças diversas, que devem ser igualadas no que se refere ao tratamento e, sobretudo, às oportunidades no seio da sociedade atual. Por além de eventual retórica radical e apesar do indiscutível unitarismo da espécie humana, recupera e trabalha com o conceito medonho de raça e reduz a opressão social à opressão racial de negros por brancos. É programa regressista e conservador, parte das estratégias do capital contra o mundo do trabalho e seu programa.
 
A proposta de igualdade racial avança essencialmente no combate às desigualdades de oportunidade. Denuncia o tratamento, no melhor dos casos, igual, dos desiguais. Através da discriminação positiva, os discriminados negativamente concorreriam em igualdade com os privilegiados, estabelecendo-se, assim, a justiça social. Nos fatos, naturaliza e recupera positivamente a competição social, pilar essencial da retórica capitalista. Para essa ideologia, não há mal em haver opressores e multidões de oprimidos. Desde que exista equilíbrio étnico nos dois segmentos!
 
A África do Sul é exemplo patético e cada vez mais gritante dessa política. Durante décadas, o apartheid serviu para a dura exploração das terras e dos braços negro-africanos. Por isso, o movimento de libertação articulava corretamente a luta contra o racismo e contra a exploração capitalista. Com a derrota mundial dos trabalhadores em fins dos anos 1980, a direção do CNA (Congresso Nacional Africano) terminou aceitando substituir a já superada elite racista na gerência da exploração das massas negras sul-africanas.
 
No governo pós-apartheid, mantiveram-se as relações de propriedade e de exploração, ou seja, econômico-sociais, sob gestão de classe política e lumpén-burguesia negro-africana, a serviço do capital e do imperialismo. O fim do apartheid estabilizou a opressão de classe, a tal ponto que o país acolhe hoje uma Copa do Mundo, sendo apresentado como exemplo a ser seguido!
A miséria e a opressão dos trabalhadores e populares sul-africanos seguiram aprofundando-se, sob a batuta de políticos negro-africanos tão corruptos e venais como os brasileiros. Atualmente, eles se preocupam, essencialmente, em formar uma classe média negra, para maior estabilização da nova ordem!
 
Correio da Cidadania: Qual a sua opinião sobre as cotas universitárias, o principal e mais discutido tópico de reivindicações do movimento negro?
 
Mario Maestri: A proposta de igualdade racial e discriminação positiva (cotas estudantis) não se preocupa com as multidões de jovens negros (pardos, brancos etc.) marginalizados em diversos graus pelo capitalismo. Pretende sobretudo conquistar equilíbrio racial entre os privilegiados. De certo modo, é como se propusesse colocar pesos nos corredores brancos, esguios, para igualá-los aos negros, mais pesados, devido a handicaps sociais históricos. Equilibrando-se as desigualdades, os vencedores serão os mais capazes.
 
O problema é que essa corrida premia os cem primeiros chegados e marginaliza os 9.900 perdedores, em diversos graus. O que importa é conquistar equilíbrio racial entre os cem laureados. Uma proposta que sequer vislumbra a possibilidade e necessidade de se pôr fim à competição canibal, para que todos sejam vencedores, segundo seus esforços, capacidades e necessidades. Trata-se de mobilização por um mundo de exploradores e de explorados sem diferenças raciais, desde que no paraíso dos privilegiados e opressores haja vagas cativas para privilegiados e opressores negros.
 
Estudar nas melhores universidades, em geral públicas, é privilégio de pequena minoria de jovens, principalmente brancos ou quase brancos. A política cotista promete que, um dia, nessa minoria de felizardos, haverá um número proporcional de negros. O que já é uma falácia, pois a base da desigualdade social apóia-se essencialmente na posse e no domínio da propriedade. A proposta cotista despreocupa-se com as multidões de jovens marginalizados – em forte proporção, negros. O fundamental é mais generais, advogados, médicos, engenheiros, farmacêuticos, capitalistas negros. Todos ferrando a população trabalhadora, branca e negra, como fazem normalmente os congêneres brancos.
 
As principais justificativas dessa proposta são duas. A primeira é que, enquanto não chegamos a uma sociedade justa (socialismo), há que melhorar a realidade na sociedade capitalista. O problema é que essa proposta correta justifica o incorreto abandono da luta, no aqui e no agora, do ensino universal, gratuito e de qualidade, parte do programa democrático – e não socialista. Esse programa inarredável das classes populares foi imposto, substancialmente, pelo mundo da democracia e do trabalho, em países como a Alemanha, a França, a Bélgica, a Itália, a Suécia etc., todas sociedades capitalistas!
 
A segunda justificativa é que o Brasil não teria recursos para garantir esse privilégio para todos. Defendendo o programa cotista, Valério Arcary, intelectual  pró-cotista, afirmou, sem enrubescer, que sequer um "governo dos trabalhadores, pelo menos nas fases iniciais da transição ao socialismo, num país como o Brasil, poderia garantir acesso irrestrito ao ensino superior para todos "! O governo brasileiro entrega bilhões a banqueiros e capitalistas, nacionais e internacionais, mas não tem os meios para implementar programa cumprido por Cuba, um país pobre, literalmente desprovido de recursos naturais e de capitais!
 
Correio da Cidadania: Dessa forma, a quem interessa a política de igualdade racial e as propostas de discriminação positiva na escola, partidos, serviço público etc., rejeitadas pelo Senado quando da aprovação do Estatuto da Igualdade Racial?  

Mario Maestri: Por primeiro, interessa ao capital, grande responsável pela defesa, propaganda e impulsão dessa política nos EUA, em fins dos anos 1950. Ela foi consolidada, como política de manipulação da questão racial, após a repressão geral e não raro massacre físico da vanguarda negra classista e revolucionária estadunidense, nos anos 1960 e 1970. Ela começou a ser introduzida no Brasil pela Fundação Ford, entre intelectuais negros, nos anos 1980. Não é por nada que a senhora Hillary Clinton, em recente viagem ao Brasil, na única atividade não oficial, foi prestigiar essas políticas em faculdade brasileira organizada a partir de critérios raciais.
 
Mas qual foi e é o resultado das cotas nos EUA? No frigir dos ovos, meio século após a implantação da política cotista, a droga e sobretudo o cárcere são a solução prioritária para a questão negra estadunidense. Os EUA, com 5% da população mundial, possuem 20% dos prisioneiros. Deles, 50% negros! No país mais rico do mundo, com recursos inimagináveis, o jovem negro acaba normalmente nos braços da droga e da prisão e raramente em universidade e emprego razoáveis.
 
E, apesar disto, o Estatuto da Igualdade Racial propõe nada menos que o Brasil esteja, "no mínimo, meio século atrás dos Estados Unidos em matéria de cidadania para o povo negro"! Isso porque, ali, o fundamental para essa política foi atingido – temos presidente, alguns generais, médicos, diplomatas, capitalistas etc. negros.
 
A política cotista é estratégia do grande capital, pois prestigia e naturaliza a ordem capitalista; nega a luta social e de classes; procura dividir os trabalhadores e oprimidos por cor e raça; fortalece a base social da sociedade opressora. E tudo isso, em geral, sem custos ao Estado.
 
A política de escola pública, gratuita e de qualidade exige investimentos, que são feitos onde ainda dominam os princípios democráticos e republicanos dos serviços públicos básicos universais. Ao contrário, a política cotista não exige que o Estado gaste um real, ao destinar 30%, 60% ou 90% das vagas das universidades públicas – dos cargos federais, postos de trabalho etc. – para negros, índios, mulheres etc. O Estado não gasta nada, pois são investimentos já feitos. Só redistribui os privilégios e as discriminações.
 
E, com as políticas cotistas, além dos dividendos político-ideológicos, o Estado classista, prestigiado, vê cair a luta e a pressão popular pela extensão desses serviços. Ao igual que nos EUA. Não é por nada, portanto, que as atuais lideranças do movimento negro cotista não exigem ensino público, livre e gratuito universal. E imaginem só a saia justa do governo, do Estado e do capital, se a juventude popular e trabalhadora, como um todo, tomasse as ruas, exigindo ensino universal, público e de qualidade! Se não obtivessem tudo que pedissem na primeira vez, levariam certamente muito.
 
As propostas de igualdade entre as raças, na ordem capitalista, interessam também a certo tipo de liderança negra. Defendendo as políticas do capital de racialização da sociedade, inserem-se no jogo da representação política e institucional, sendo por isso gratificada econômica, social e simbolicamente. Não creio que tenha sido estudada a gênese-consolidação dessa representação étnica nascida à sombra do Estado, fortemente impulsionada durante os governos Lula da Silva. Porém, mutatis mutandis, não parece ser processo diverso do ocorrido com as representações sindicais e populares cooptadas pelo Estado, após a enorme derrota dos trabalhadores de fins dos anos 1980.
 
Finalmente, essas políticas interessam a segmentos médios e médio-baixos negros. É segredo de Polichinelo que as políticas de cotas privilegiam sobretudo os segmentos negros relativamente mais favorecidos, em detrimento dos trabalhadores e marginalizados de mesma origem. O filho do professor negro vence o filho do pedreiro negro, na disputa de uma cota. Ao igual do que ocorre com filho do engenheiro branco, ao disputar com o do zelador de mesma cor no vestibular. Ainda que, em bem da verdade, os filhos dos zeladores e dos pedreiros sequer sonhem com um curso universitário.
 
Correio da Cidadania: E quem está contra o Estatuto da Igualdade Racial? O que você pensa da participação do senador Demóstenes Torres na relatoria desse projeto, após declarações preconceituosas sobre a escravidão e a opressão aos negros?  

Mario Maestri: No Brasil, a oposição às políticas de igualdade racial tem duas grandes vertentes, essencialmente opostas (com posições intermediárias, é claro). A vertente minoritária, com escasso espaço na mídia e no debate, é formada por um punhado de intelectuais, ativistas, sindicalistas, lideranças sociais etc., negros e brancos, de tradição republicana, democrática, socialista e revolucionária. Em geral, ela expressa, direta ou indiretamente, os interesses do mundo do trabalho e, portanto, da grande população trabalhadora e marginalizada negra, discriminada e esquecida pelas propostas retóricas de igualdade racial. Essa vertente mobiliza-se pela luta anti-racista e pelos direitos democráticos gerais, no aqui e no agora, sem qualquer exceção e privilégios.
 
A vertente majoritária, com grande presença na mídia, formada sobretudo por políticos, jornalistas, intelectuais, é impulsionada por preconceitos elitistas, racistas e corporativistas. É formada essencialmente por brancos e alguns oportunistas não-brancos. O senador Demóstenes Torres é representante exótico desta corrente, assim como, por exemplo, o jornalista  Ali Kamel constitui defensor refinado das mesmas visões.
 
A primeira vertente, ao refletir, direta ou indiretamente, o mundo do trabalho e seu programa, tem consciência das conseqüências dramáticas das propostas de racialização da sociedade brasileira para a luta e as conquistas sociais e para a própria organização e convivência nacionais. A segunda representa os setores sociais médios brancos em parte deslocados por essas políticas, em favor dos setores da classe média e médio-baixa negra, como proposto.
 
No último caso, trata-se de defesa conservadora de privilégios das classes médias brancas, contra as políticas raciais conservadoras do grande capital, despreocupado no geral com aqueles segmentos. Trata-se de um movimento em algo semelhante à resistência final dos racistas sul-africanos, quando o capital decidira a entronização da nova classe política negro-africana. Resistência que se mantém até hoje em forma já residual na África do Sul. Não devemos esquecer que o capital não tem cor. Historicamente, ele se serve do racismo para impor sua dominação e obter super-exploração. Porém, quando necessário, ferra sem dó os segmentos racistas.
 
Correio da Cidadania: O Senado retirou do projeto a obrigatoriedade do registro da cor das pessoas nos formulários de atendimento do SUS, considerado por muitos como o retrocesso maior, já que os índices referentes à saúde da população negra denunciariam fortemente a discriminação racial. 

Mario Maestri: É enrolação estatística dizer que os negros, por serem negros, são mais desfavorecidos que os brancos, por serem brancos, por exemplo, no relativo à saúde. Comparemos os engenheiros negros e os pedreiros brancos. Nesse caso, a saúde dos brancos é certamente pior do que a dos negros. E se cotejarmos a saúde dos médicos brancos à dos médicos negros certamente ela será, no geral, idêntica.
 
O fato de que há maioria de negros entre as classes exploradas e maior número de brancos entre os privilegiados determina diferença social que pode ser percebida artificialmente como racial, e não social. Seria estatisticamente mais interessante registrar e tornar pública a situação sócio-profissional dos atendidos pelo SUS, registrando a enorme insuficiência das classes trabalhadoras e marginalizadas, brancas, negras e pardas, quanto à saúde e à esperança de vida. Realidade não retida, como devia ser, no relativo à remuneração e à idade de aposentadoria.
 
No essencial, as propostas da obrigação da definição da cor (no fato, da pretensa raça) quando de registros públicos procuram impor literalmente racialização artificial do país. Para essa proposta, você não seria mais simplesmente brasileiro. Mas, obrigatoriamente, brasileiro branco ou brasileiro negro.
 
Trata-se de proposta anti-republicana, antidemocrática e profundamente racista determinar pela lei que todo cidadão assuma uma identidade racial aleatória ou oportunista. Uma identidade racial que, no novo mundo proposto, poderia ensejar privilégios em relação ao resto da população. Esta proposta se apóia igualmente na concepção da necessidade da definição da raça quando do atendimento médico, pois, segundo ela, negros e brancos, de raças diversas, exigiriam tratamentos e procedimentos médicos diversos! Ou seja, que brancos e negros seriam biologicamente diversos, como defendiam já os escravistas e seus ideólogos racistas, como o celerado e farsante conde de Gobineau (1816-1882).
 
Proposta racista, de caráter acientífico, que demonstra sua enorme obtusidade, ainda mais no Brasil, onde a auto-definição racial tende no geral a sequer possuir uma correspondência genética mais precisa. Os estudos científicos apontam para que, em uma enorme quantidade, os brasileiros são produtos de uma forte mescla genética de população das mais diversas origens européias, americanas, africanas, asiáticas etc. E não devemos esquecer que aquelas populações já resultavam de enormes interações genéticas.
 
Correio da Cidadania: Como você enxerga as lamentações do movimento negro, que definiu a aprovação dessa versão do Estatuto como traição a lutas históricas e que seria melhor brigar mais dez anos pela aprovação de versão satisfatória? Você incluiria o projeto aprovado no rol de recuos do governo Lula da Silva, em praticamente todas as pautas de caráter mais progressista? 
 
Mario Maestri: Foi enorme a cooptação pelo Estado de dirigentes populares no governo Lula da Silva. Hoje, enorme parte das direções negras tem ligações diretas ou indiretas com o lulismo, com o petismo, com o Estado, com os quais não arriscam oposição e dissidências. Ao igual que as direções sindicalistas, camponesas, populares etc. também cooptadas.
 
Jamais vimos essas lideranças do movimento negro mobilizando-se contra a ocupação do Haiti pelo Exército brasileiro. Ou levantando-se contra o tratamento bestial do sistema prisional brasileiro, habitado por enorme população negra. Ou denunciando o quase total abandono das populações flageladas dos últimos tempos. Silêncio de túmulo.
 
A reprovação do Estatuto no Senado parece ter causado apenas as assinaladas lamentações das lideranças responsáveis por sua apresentação. Ele não interpretava as necessidades da população negra pobre e explorada, que continua abandonada à sua sorte, sem conseguir construir suas verdadeiras lideranças e programas, ao igual que a maioria dos trabalhadores e oprimidos dos campos e das cidades do Brasil.
 
Correio da Cidadania: Por fim e diante de todos os pontos expostos, você acredita que se realizou um debate público a contento, com a participação efetiva da sociedade, na discussão das políticas de discriminação racial positiva, em geral, e do Estatuto, em particular?  

Mario Maestri: Houve debate, superestrutural e institucional: programas de rádio e de televisão; artigos e livros jornalísticos e acadêmicos; alguns editoriais. Porém, o debate jamais alcançou a população nacional, a ser enquadrada pelo Estatuto, seja qual for a sua cor. Se fizéssemos um levantamento, a imensa maioria dos brasileiros não sabe o que seja o Estatuto e a quase totalidade não sabe realmente o que ele propõe.
 
O debate jamais foi realmente enfrentado, mesmo pela esquerda, que, paradoxalmente, no passado, destacou-se pela ênfase da importância da escravidão e do racismo na sociedade de classes no Brasil. No século 20, foram efetivamente militantes marxistas e comunistas que contribuíram fortemente para que a questão negra se transformasse no Brasil em problema histórico e teórico de larga discussão – Astrogildo Pereira, Edison Carneiro, Benjamin Perét, Clóvis Moura, Décio Freitas etc. 
 
A vanguarda da esquerda organizada aceitou as propostas de racialização da sociedade nacional sem crítica e reflexão, como parte das novas e antigas sensibilidades ambientalistas, feministas, anti-racistas etc. Contribuíram nessa aceitação acrítica e passiva a escassa formação política e, sobretudo, os frágeis vínculos com o operariado nacional. Operariado em franca regressão, no Brasil e no mundo, sobretudo após a derrota histórica de fins de 1980, que ensejou depressão dos valores universalistas, racionalistas, socialistas etc. Ou seja, com a crescente fragilidade do programa dos trabalhadores, fortaleceu-se a influência das propostas ideológicas e conservadoras do capital, também entre a própria esquerda, como no caso das visões raciais da sociedade.
 
Nas razões dessa renúncia passiva ao programa socialista ajuntaríamos uma espécie de consciência culpada, por parte de militantes em geral com origem na classe média e médio-baixa branca, no contexto de escassa importância dada à questão, vista tradicionalmente como periférica aos problemas centrais da revolução, mesmo quando destacada nos programas políticos. Foram também importante as pressões da juventude negra estudantil radicalizada, conquistada para essas propostas no processo de flexibilização de organizações de esquerda, como o PSTU, de frágeis vínculos sociais e políticos com os trabalhadores.
 

* Por Valéria Nader, do Correio da Cidadania.
   Fonte:  http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=4797:manchete030710&catid=25:politica&Itemid=47

Movimento negro não respeita as diferenças

MOVIMENTO NEGRO NACIONAL NÃO RESPEITA DIFERENÇAS
Aucides Sales *


Conheci em 1982, o artista plástico José Maria Paixão, integrante do Movimento Negro do Rio de Janeiro, dedicado ao estudo da língua nagô, etnias e a obra de Lima Barreto.

Hoje em contato com integrantes do Movimento Negro Nacional, ligados a Entidade Negra do Rio Grande do Norte, Kilombo, percebo a mudança de atitude e fico estarrecido com as contradições contidas no discurso. 
Atualmente não vejo no Movimento Negro menor preocupação com qualquer estudo da cultura negra, porém com o cumprimento da lei anti-racismo (para tanto, a entidade Kilombo tem o chamado "disque racismo"), obtenção de regalias para os negros e uma desesperada tentativa de convencer a opinião pública, de que o Brasil não é mais um país indígena, mas que agora é um país negro, aliás, o maior depois da Nigéria, uma vez que 45% da nossa população é descendente de africanos, como afirma a assistente social Elisabete Silva na cartilha "Dito e Feito número 5", editada em novembro de 2001, pelo mandato popular do vereador Fernando Mineiro, citando como fonte a PNAD de 1998. 

Infelizmente tenho que contestar a afirmação da assistente social, pois em consulta ao citado documento, correspondente ao período de 1992/1999, encontrei o percentual de 5,4% correspondente aos descendentes de africanos, donde deduzimos que para ter 45% a Senhora Elyzabeth somou os pretos aos pardos. 

Essa atitude da Assistente Social supracitada tem por base uma pretensão do Movimento Negro, já contida no Plano Nacional de Direitos Humanos publicado pela Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça em 1988.

No item referente à proteção do direito a tratamento igualitário perante a lei, abordando as populações negras, o sétimo ponto propõe "determinar ao IBGE a adoção de critério de se considerar os mulatos, pardos e os pretos, como integrantes da população negra". 

Esta determinação absurda, felizmente ainda não esta sendo cumprida pelo IBGE, mesmo assim a assistente social Elisabeth Silva canta vitória antes do resultado da consulta pública feita pelo Ministério da Justiça, através da internete, encerrada no início de janeiro de 2002, sobre as propostas para o Plano Nacional de Direitos Humanos, e dessa forma fornece os dados do IBGE manipulando-os em favor do Movimento Negro. 

Qual a base científica dessa pretensão do Movimento Negro que age como se acreditasse que existam apenas dois grupos, o de pretos e o de brancos, formando a população do Brasil? É indubitável a existência de índios e seus descendentes, integrando a população brasileira, que dessa forma, compõe-se de três grupos distintos.
Os critérios para a determinação do item cor, durante a pesquisa do IBGE, são democráticos, ou seja, o entrevistado é quem determina qual a sua própria cor escolhendo entre os tipos: branco, preto, pardo, índio e amarelo.

Os descendentes de índios cruzados com brancos e negros são sem dúvida contados como pardos, por terem a pele escura, e nem por isso são apenas afrodescendente, mas descendente de todos os grupos, o que não dá o direito a um grupo declarar-se detentor exclusivo da origem dos pardos.

Reivindicar este direito será "respeitar as diferenças" como a Organização Kilombo diz ser uma de suas metas? Ou fortalecer os laços de solidariedade (outra meta da Kilombo), se faz com negação a pesquisas como a que foi realizada pelo Dr. Danilo Pena da UFMG e a qual faz o IBGE, para forjar uma falsa realidade em favor próprio? A revista Veja publicou em dezembro de 2000, a pesquisa supra citada, realizada em consonância com a ONU, teve como objetivo de realizar o mapeamento genético do globo, fazendo para tanto, exames de DNA. 

Tomando os critérios de cor do IBGE, os resultados mostram serem infundadas as pretensões do MNN que insiste em proclamar-se maioria, pois até no grupo de pretos, a pesquisa do Dr. Pena acusa existir apenas 40% de indivíduos os quais podem ser realmente classificados como tais. 

No grupo dos pardos, os pretos ocupam uma faixa de apenas 29%, contra 35% que são resultado do cruzamento de índia com branco e o restante é o resultado da mistura dos três grupos. 

Negar a existência de descendentes indígenas na nossa população, é um erro grosseiro, um equívoco que pode custar caro à imagem de Movimento Negro Nacional, que negando a participação dos indígenas na formação do grupo dos pardos, desrespeita as diferenças existentes neste grupo, passando à história como trapaceiros e usurpadores do lugar que a lógica reserva para os primeiros habitantes deste continente que contribuíram com 36% das mães que geraram o povo brasileiro segundo os dados do Dr. Danilo Pena que também afirmar que as mães negras representam o percentual de 27%, sendo por tanto a menor contribuição, já que os pais são quase que exclusivamente brancos, a que se somando as mães brancas, compõe nossa população que tem 60% de indivíduos que se dizem brancos (a pesquisa de Pena mostrar que 55% desta parcela tem sangue indígena, 7% tem sangue negro), 5;4% de afrodescendentes, 34% de pardos e 0,6 de índios e amarelos. 

Não vejam em meu protesto um ato racista, mas pelo contrário, levanto-me contra um grupo que se valendo de uma oportunidade se insinua falsamente, maioria. Se o Movimento Negro sugere que todos sejam contados como negros, porque não contar todos como índios? Afinal estamos na terra que deles lhes foi tirada.
 A solidariedade do MNN deixou os índios de fora da cota de 20% das vagas nas universidades e nos empregos federais que agora são reservadas para os afrodescendentes.

Os pretos são apenas 5,4% da população, mas inexplicavelmente exigem uma cota de vagas quase quatro vezes maior que o seu percentual. 

Boa parte da população mesmo branco ou pardo, não consegue vaga na universidade e emprego público, pelo mesmo motivo que os pretos, ou seja, por ser tão pobre quanto eles, pois se sabe que a riqueza brasileira esta na mão de uma pequena parcela da população branca, que sendo a grande maioria da população (60%) boa parte que resta, também amarga a miséria, apesar da brancura da pele. 

O que falta é oportunidade para todos, e não cota para branco ou preto. Um problema de difícil solução, é determinar a quem de direito cabe as vagas reservadas pela nova lei. 

Qual o critério para escolha dos candidatos? Quem for mais preto vai primeiro? Aí pardo claro, ou seja, o caboclo, já está em desvantagem. 

Então usa-se teste de DNA? O custo é superior a 800 reais, quem paga? Problema 2: dois irmãos de pais mestiços, um nasceu preto e outro muito claro, os dois entram na universidade (ou na vaga do emprego público), ou só entra o preto? Isto parece uma comédia de Molière ou Otelo às avessas.

Cria-se no Brasil uma nova etnologia, a do preto e do branco, e uma nova nobreza, formada pelos afrodescendentes e pelos caboclos ávidos de serem agora, não mais brancos, porém agora "afros" por causa dos tais 20% das vagas nas universidades e empregos federais. O Rio Grande do Norte será grandemente afetado, já que a maioria de sua população (64%) é formada de pardos e uma minoria menor que a nacional (2,8%) de pretos. 

Estas medidas podem parecer simpáticas aos olhos da ONU, porém diante daqueles que orgulham se de portar o universal sangue indígena, elas soaram como um ultraje. 

Segundo Maquiavel, se divide para reinar. Seja quem for, está reinando, e muito bem, pois com o acolhimento destas pretensões descabidas, o governo do PSDB já dividiu a pobreza em " quem tem a pele escura e quem tem a pele clara" e dando privilégios aos afrodescendentes vai gerar antipatia a este grupo nos demais, fomentando a desunião, e o povo desunido sempre será vencido.



* Aucides Sales é descendente de índios Potiguara.

Fonte: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/discrim/mov_negro.html

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Intromissão norte-americana no Brasil

DICOTOMIA RACIAL E RIQUEZA CROMÁTICA
Antonio Risério


Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, num texto de 1998, sobre as Artimanhas da Razão Imperialista, examinaram o assunto de modo lúdico e agudo, partindo do princípio de que "o imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição história singular, tornando-os irreconhecíveis como tais". E é o que vemos hoje: os Estados Unidos tratando de universalizar as experiências particulares norte-americanas, como se no mundo não houvesse senão aquela made in USA. Em Relativismos Versus Verdade Única, conferência realizada em São Paulo e depois incluída no livro Relativismo Enquanto Visão de Mundo (organizado por Antonio Cícero e Waly Salomão), o antropólogo Ernest Gellner flagrou essa disposição absolutizante já na própria declaração de independência dos EUA, datada do ano de 1776: "Os americanos tendem a absolutizar sua própria cultura. O exemplo mais cômico é, naturalmente, um de seus documentos mais conhecidos, que é o preâmbulo da Declaração de Independência Americana. Ele diz:  '(...) essas coisas que consideramos evidentes (...)', e depois as enumera (aliás, são coisas ótimas): '(...)a vida, a liberdade e a busca à felicidade'. Também tenho esses valores, mas daí a considerá-los evidentes... Ora, a maior parte da humanidade acha-os ininteligíveis, ou paradisíacos, ou heréticos. O que quero dizer é que o resto da humanidade não achava que a busca individualista de metas particulares dentro do respeito pelos outros fosse a condição humana natural - era preciso lutar por isso. E os americanos achavam self-evident. É essa mesma propensão narcísico-absolutizante que se expressa sem pudor no simples e impróprio fato dos norte-americanos chamarem, aos EUA, América, como se eles fossem não um país, mas a própria massa continental do Novo Mundo.

Mas retornemos a Bourdieu e Wacquant, que escrevem: "Hoje em dia, numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades norte-americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro". E ainda: "Assim, planetarizados, mundializados, no sentido estritamente geográfico, pelo desenraizamento, ao mesmo tempo que desparticularizados pelo efeito de falso corte que produz a conceitualização, esses lugares-comuns ('no sentido aristotélico de noções ou de teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se argumenta ou, por outras palavras, esses pressupostos da discussão que permanecem indiscutidos') da grande vulgata planetária, transformados aos poucos, pela instância midiática, em senso comum universal, chegam a fazer esquecer que têm sua origem nas realidades complexas e controvertidas de uma sociedade histórica particular (os EUA), constituída tacitamente como modelo e medida de todas as coisas". E o fato é que esta exportação de modelos e conceitos descontextualizados, como se eles tivessem valor universal, nos atingiu de cheio, transformando parte considerável do ambiente universitário brasileiro numa espécie de MacDonald's de construções ideológicas e sanduíches conceituais alheios. O exemplo brasileiro  aviso  não sou eu quem dá, mas os próprios Bourdieu e Wacquant, impressionados com a nossa rendição político-acadêmica à pressão norte-americana. Um caso típico e acabado de dominação simbólica, alcançada por diversos meios, alguns dos quais de difícil admissão por parte dos submetidos ao novo jugo mental. Especificamente, Bourdieu e Wacquant apontam para recentes leituras da realidade racial brasileira, que tentam dicotomizá-la arbitrariamente segundo o padrão norte-americano, que social e legalmente, não reconhece a existência da figura do mestiço, mas somente de pretos e brancos.

"Em um campo mais próximo das realidades políticas, um debate como o da 'raça' ('em que a particularidade é flagrante e está particularmente longe de ser exemplar) e da identidade dá lugar a semelhantes intrusões etnocêntricas. Uma representação histórica, surgida do fato de que a tradição norte-americana calca, de  maneira arbitrária, a dicotomia entre brancos e negros em uma realidade infinitamente mais complexa, pode até mesmo se impor em países em que os princípios de visão e divisão, codificados  ou práticos, das diferenças étnicas são completamente diferentes e em que, como o Brasil, ainda eram considerados como contra-exemplos do 'modelo norte-americano'. A maior parte das pesquisas recentes sobre a desigualdade etnorracial no Brasil, empreendidas por norte-americanos e latino-americanos formados nos Estados Unidos, esforçam-se em provar que  [o Brasil] não é menos racista do que os outros ... Ainda pior, o racismo mascarado à brasileira seria, por definição, mais perverso, já que dissimulado e negado. É o que pretende, em 'Orpheus and Power' , o cientista político afro-americano Michael Hanchard: ao aplicar as categorias raciais americanas à situação brasileira, o autor erige a história particular do movimento em favor dos Direitos Civis (nos EUA) como padrão universal da luta dos grupos de cor oprimidos. Em vez de considerar a constituição da ordem etnorracial brasileira em sua lógica, essas pesquisas contentam-se, na maioria das vezes, em substituir na sua totalidade o mito nacional da 'democracia racial'... pelo mito segundo o qual todas as sociedades são racistas, inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações 'sociais' são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de racismo torna-se um simples instrumento de acusação", escrevem Bourdieu e Wacquant.

Como explicar que um padrão particular tenha se elevado à condição de padrão universal – e que pesquisadores brasileiros tenham engolido tão sofregamente a nova pílula? "O fato de que, no decorrer dos últimos anos, a sociodicéia racial (ou racista) tenha conseguido se 'mundializar', perdendo ao mesmo tempo suas características de discurso justificador para uso interno ou local, é sem dúvida, uma das confirmações mais exemplares do império e da influência simbólicos que os Estados Unidos exercem sobre toda espécie de produção erudita e, sobretudo, semierudita, em particular, através do poder de consagração que esse país detém, e dos benefícios materiais e simbólicos que a adesão mais ou menos assumida ou vergonhosa ao modelo norte-americano proporciona aos pesquisadores dos países dominados", comentam os autores citados. Arrolando ainda, entre outros fatores, a ação de instituições norte-americanas ("Poder-se-ia ainda invocar ... o papel motor que desempenham as grandes fundações americanas de filantropia e pesquisa  na difusão da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário brasileiro... a Fundação Rockefeller financia um programa sobre 'Raça e Etnicidade' na Universidade Federal do Rio de Janeir, bem como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes"); a comercialização e a internacionalização  da produção editorial universitária; a militância dos pesquisadores norte-americanos "que vão ao Brasil encorajar os líderes do Movimento Negro a adotar as táticas do movimento afro-americano de defesa dos direitos civis e denunciar a categoria pardo ... a fim de mobilizar todos os brasileiros de ascendência africana a partir de uma posição dicotômica entre 'afro-brasileiros' e 'brancos'. Por fim, Bourdieu e Wacquant  tocam ainda numa tecla importante: "o imperialismo cultural ... há de se impor sempre melhor quando é servido por intelectuais progressistas (ou 'de cor', no caso da desigualdade racial), pouco suspeitos, aparentemente, de promover os interesses hegemônicos de um país".

De um modo ou de outro, o fato é que a tendência para aderir ao figurino norte-americano acabou se impondo entre militantes do Movimento Negro, que assistiu, em seguida, à instituicionalização  de seu esquerdismo "racialista" na universidade pública, com acadêmicos ávidos para demonstrar e exibir alguma "consciência crítica", algum engajamento político e de corresponder ex cathedra a alguma "base social", ainda que minimamente efetiva ou apenas crível. E daí vieram as críticas à mestiçagem, os discursos contra a classificação racial brasileira, as tentativas de ler o Brasil pelo prisma arbitrário do padrão racial dicotômico  em vigor nos Estados Unidos. Nos EUA (e só nos EUA, entre todos os países das Américas), como dissemos, qualquer indivíduo que tenha um mínimo de "sangue negro" é classificado automaticamente como negro. É a chamada "regra de descendência", que não abre espaço algum para a existência de mestiços. (...)


Fonte: "Dicotomia racial e riqueza cromática". In: E. Araújo. Brasileiro, Brasileiros. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura; Museu Afro Brasil, c. 2005, p. 165-167.

domingo, 30 de setembro de 2012

RACISMO E EDUCAÇÃO

RACISMO E EDUCAÇÃO
Marcelo Pereira


            Com o objetivo de determinar o núcleo-comum para os currículos do ensino de 1º e 2º graus durante a última ditadura, o Parecer nº 853/1971 do Conselho Federal de Educação dividiu as matérias em três grandes linhas:  (a) Comunicação e Expressão, (b) Estudos Sociais e (c) Ciências.

            Os Estudos Sociais incluíam as matérias Geografia, História e Organização Sociais e Política do Brasil (OSPB). Esta foi introduzida com “a função de sublinhar” um dos objetivos do ensino de História e Geografia, ou seja, “contribuir para situar construtivamente o homem em ‘sua circunstância’”. Segundo o Parecer nº 853/1971, para a matéria OSPB também deviam convergir todas as demais matérias, “com vistas a uma efetiva tomada de consciência da cultura brasileira, nas suas manifestações mais dinâmicas, e do processo em marcha do desenvolvimento nacional.”

 Alvo de críticas, a matéria OSPB foi eliminada dos currículos de ensino com a democratização do país. No entanto, ela pode servir para medir o impacto do racismo oficial na educação da época. Qual era a ideologia racial então vigente?

            O sociólogo Thales de Azevedo deixa subentendido numa nota do livro Democracia Racial que ainda havia resquícios de racismo contra mestiços no começo da década de 70, ao notar que, em dois artigos publicados no Jornal do Brasil em maio de 1972, J. O. Meira Pena “desmacara a pretensão oficial de apresentar o Brasil como país branco”, com um “número de mestiços ... como desejam algumas publicações oficiais, ‘diminuto’”.

            Vejamos se a ideologia racial do Estado Brasileiro, apontada por Meira Pena, estava presente ou não num livro didático da época. O único livro até agora encontrado para análise é intitulado Organização Social e Política do Brasil (São Paulo: Editora Moderna, 1977, 2. ed.). É de autoria de João Gabriel Montefusco.

            Montefusco trata, no capítulo 3 do seu livro, da “Etnia Brasileira”. Primeiramente, ele define etnia como “um conjunto de indivíduos que apresentam idênticas características físicas e culturais” e, a seguir, afirma que, “[n]a formação étnica do povo brasileiro, participaram principalmente três elementos: brancos (“principalmente portugueses”), negros (“principalmente Bantos e Sudaneses”) e indígenas (“compreendendo principalmente quatro grupos de tribos, como: Tupi-guaranis, Tapuias, Caraíbas e Nu-aruaques.”).
             
            O autor nota que esses “elementos não se mantiveram isolados, mas apresentaram um amplo processo de miscigenação do qual resultou um avultado número de mestiços.” Em seguida, apresenta a proporção de cada um desses elementos na população brasileira da época – brancos (51%), negros (6%), indígenas (1%) e mestiços (42%) –  e comenta:

            “Observa-se, portanto, que quase metade da população é de origem mestiça; aliás, a cada nova contagem da população, esse número aumenta, demonstrando que o processo de mistura continua cada vez mais atuante.”.

            Atentando para a diversidade no seio da população mestiça, Montefusco assinala:

            “É possível reconhecer três tipos fundamentais de mestiços:
           
 Mamelucos ou caboclos – resultantes do cruzamento de brancos com índios.
Mulatos – resultantes do cruzamento de brancos com negros.
Cafusos – resultantes do cruzamento de negros com índios.”


            E, por fim, o autor observa que,  “[d]esses mestiços, o mais numeroso é o mulato, o qual chega a representar cerca de 18% da população brasileira.” Dos cinco quadros com destaque a dados ou informações apresentados no capítulo, dois se referem aos mestiços.

                       
            Numa época em que não havia liberdade de expressão e em que ainda se encontravam resquícios de velho branqueamento (política que tinha como objetivo formar um Brasil com uma população apenas de aparência branca) e de mestiçofobia, percebe-se que o livro analisado não reproduziu a ideologia racial oficial vigente no começo dos anos 70.


Racismo cordial


A análise de outros livros de Estudos Sociais pode mostrar se havia ou não uma preocupação, por parte dos racistas  que estavam então no poder, de impor a sua ideologia racial através da educação, como ocorre no presente. A este respeito, é eloquente o trabalho realizado por Ana Paula Pereira Gomes no programa “São Paulo: educando pela diferença para a igualdade”, desenvolvido pela Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e subvencionado pelo Governo do Estado de São Paulo, com o apoio da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Através do site www.ufscar.br/~neab, Ana Paula Pereira Gomes respondeu a perguntas de professores da rede de ensino do Estado. Vinte delas foram publicadas no capítulo 6 do livro curiosamente intitulado Educação como prática da diferença (Editora Autores Associados), organizado por Anete Abramowicz, Lucia Maria de Assunção Barbosa e Valter Roberto Silvério.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divide a população brasileira em cinco raças ou cores e as define, conforme indicado no verbete “cor ou raça” do seu Atlas Geográfico Escolar, da seguinte maneira: “branca, preta, amarela (pessoa de origem japonesa, chinesa, corea etc.), parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoas de outra cor ou raça) ou indígena (pessoa indígena ou índia). Muito provavelmente, João Gabriel Montefusco utilizou mestiço como sinônimo de pardo no seu livro de OSPB.


No entanto, Ana Paula Pereira Gomes observa na questão 16 do capítulo “Respondendo a perguntas de professores da rede pública sobre a questão racial” do referido livro que a “definição para cor ‘parda’ não é esclarecedora” e indaga: “Como definir para o aluno?” E explica: “Toda pessoa que tem pele clara e ausência de algum(ns) traço(s) diacrítico(s) como cabelo crespo, nariz arredondado, lábios grossos etc., mas presença de outros e (ou) reconheça um pertencimento de origem associada aos negros pode ser considerada parda. Pardo é a categoria usada para identificar de alguma forma a esse grupo populacional mesmo sem exibir explicitamente todos os traços identificados com esse grupo. Assim, percebemos que a categorial racial negro inclui duas categorias de cor: preto e pardo.”

            Na questão 5 do referido capítulo, Ana Paula Pereira Gomes já exprime a sua percepção, afirmando que  “preto é um termo que se refere à aparência dos negros e pele escura, e que com o termo pardo forma o par das categorias de cor da população negra.”  Essa definição viola, porém, o item 56 da Declaração de Durban, que diz: “Reconhecemos a existência em muitos países de uma população mestiça de diferentes origens étnicas e raciais e sua valiosa contribuição para a promoção da tolerância e do respeito nessas sociedades; e condenamos a discriminação de que é vítima, especialmente porque tal discriminação pode ser negada devido à sua sutil natureza.”

O Brasil é signatário da Declaração de Durban, produto da III Conferência Mundial  da ONU contra o Racismo. A definição de pardo de Ana Paula Pereira Gomes está em consonância com três propostas mestiçófobas apresentadas ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, contidas nas três edições do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), e com a atual ideologia racial do Estado Brasileiro.




           

           

           
           

sábado, 25 de agosto de 2012

História negra e indígena

LEI Nº 10.639 E  PARECER CNE/CP Nº 003/2004: O PROBLEMA DAS HISTÓRIAS E CULTURAS OCULTADAS
Marcelo Pereira
           

Recuperando o espaço ocupado pelo etnocentrismo negro na primeira redação da Lei Nº 10.639 de 2003 (que tornava obrigatório apenas o estudo da história e cultura “afro-brasileira”), a Lei nº 11.645 de 2008 finalmente contemplou o estudo da história e cultura indígena, tornando-o, ao lado da negra, obrigatório nos estabelecimentos de ensino.
           
Embora deixe as marcas de que o negro é mais importante do que o indígena (a palavra “negro” sempre antecede “indígena” e só se menciona a história da África), a nova redação da Lei Nº 10.639 (dada pela Lei Nº 11.645) determina que o conteúdo programático do ensino também incluirá, entre outras coisas, aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira a partir do grupo indígena.

Para não ser discriminatória, a Lei Nº 10.639 precisa agora contemplar explicitamente o mestiço. Tornando-o visível, será possível compreender a formação de grande parte da população brasileira se deu não apenas a partir do indígena e do africano, mas também do europeu (sem que a contribuição deste seja superestimada ou ocultada). Bem ou mal, os portugueses também são responsáveis pela formação da história e da cultura da população mestiça desde a colonização, assim como os japoneses têm sido a partir do começo do século XX

Tratar do mestiço é também uma maneira de compreender o Brasil. O antropólogo Darcy Ribeiro, por exemplo,  atribuiu primeiramente ao mestiço da mulher tupi-guarani com o homem português – outrora denominado mameluco e hoje caboclo – “o papel principal na formação da sociedade brasileira”, uma vez que não era  índio  nem europeu. Embora Darcy considerasse os tupis e os portugueses como “protocélulas” da cultura brasileira, ele também atribuiu ao mulato um papel importante na formação posterior da nossa sociedade e na consciência de ser brasileiro, uma vez que tal mestiço não era africano nem europeu.

Das referidas protocélulas da nossa cultura, que tinham “uma feição essencialmente tupi”, surgiu a cultura brasileira rústica. Darcy Ribeiro assinala esta se estende por “áreas culturais”: a sertaneja (no Nordeste árido e nos cerrados do Centro-Oeste), cabocla (na Amazônia), a caipira (no Centro-Sul), etc. A cultura caipira, por exemplo, é compartilhada pelo “caipira branco”, o “caipira caboclo”, o “caipira preto” e o “caipira mulato”, segundo Cornélio Pires.

Darcy  Ribeiro trata apenas das chamadas culturas tradicionais, mas é possível distinguir uma cultura mulata urbana (produto do encontro das tradições culturais europeias e africanas), que nasceu no Brasil colonial e floresceu sobretudo na região de Minas Gerais do século XVIII e no Rio de Janeiro do século XIX. Há outras culturas mestiças urbanas: multiétnica, luso-nipo-brasileira, etc.


História negra e indígena

            No Brasil colonial e imperial, a mestiçagem não aconteceu apenas nas aldeias indígenas e nas senzalas: nos quilombos nasceram cafuzos (mestiços de origem indígena e negra), oriundos do violento rapto de índias pelos negros. Símbolo de liberdade do Movimento Negro, o quilombo também foi o cativeiro e o local de estupro  de mulheres indígenas. Em entrevista ao Estado de S. Paulo (23/11/2003), a geneticista Silviene Oliveira relatou que populações de remanescentes de quilombos “contam como uma avó ou bisavó índia foi caçada por cães para o quilombo.” Houve, porém, casos de alianças entre indígenas e quilombolas.

Fora dos quilombos, o “sangue” indígena também chegou a grande parte dos brasileiros através do caboclo (ou mameluco). A miscigenação entre descendentes de índios e de africanos devia ser tão generalizada no século XIX que o intelectual branco Sílvio Romero previa que uma parte do povo brasileiro seria uma mescla  “áfrico-indiana” (e outra, “latino-germânica”). O resultado do Retrato Molecular do Brasil revelou, porém, que há três elementos comuns a quase todos.

Sérgio Danilo Pena assinala em “Retrato Molecular do Brasil, Versão 2001” (Homo brasilis, ed. FUNPEC-RP) que “30% dos brancos - ou seja, quase 22.190.000 - indivíduos possuem haplogrupos mitocondrias” (isto é, linhagens maternas) indígenas e observa: “Se levarmos em conta indivíduos pardos e negros, podemos calcular grosseiramente que 40 a 50 milhões de brasileiros não ameríndios possuem DNA mitocondrial ameríndio.”  Diferentemente do que quer fazer acreditar o Parecer CNE/CP 0003/2004, os “pretos” e os pardos não são somente descendentes de africanos.



quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Afrodescendentes brancos

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E OS “AFRODESCENDENTES”
Marcelo Pereira



Desenvolvido por uma equipe de geneticistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) sob a orientação do Dr. Sérgio Danilo Pena, o extraordinário estudo Retrato Molecular do Brasil  comprovou o que cientistas sociais, como Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre,  já afirmavam: os brancos brasileiros também têm ascendência africana. Tal estudo revelou  que os brancos  possuem, em média, 28% de linhagens maternas africanas.

No artigo “Pode a genética definir quem deve se beneficiar das cotas universitárias e demais ações afirmativas?” (revista Estudos Avançados, nº 50), Sérgio Danilo Pena e Maria Cátira Bortolini  traduzem a importância do Retrato Molecular do Brasil: definindo “como afrodescendente toda pessoa com mais de 10% de ancestralidade africana”, esses geneticistas  chegam a resultados que eles próprios consideram impressionantes: “87% dos brasileiros, ou seja, cerca de 146 milhões de pessoas pelo censo de 2000, apresentam mais de 10% de ancestralidade africana. Os dados mostram também que 48% dos afrodescendentes brasileiros se autoclassificam como brancos”.

            O Retrato Molecular do Brasil foi divulgado pela imprensa em 2000. No entanto, o Parecer CNE/CP Nº 003/2004, que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, considera como “afrodescendentes” ou “afro-brasileiros” apenas as populações parda e preta (segundo a classificação de “raça ou cor” do IBGE) – o que prova que o termos afrodescendente e afro-brasileiro são ideológicos e devem ser utilizados com prudência.

Ansiosos por dividir o Brasil em “brancos e afro-brasileiros” ou “brancos e negros” de facto e não apenas teoricamente (como bem mostram as estatísticas das desigualdades “raciais”), os militantes negros não gostaram dos resultados da pesquisa Retrato Molecular do Brasil. Em entrevista à revista Veja (20/12/2000) o militante negro Athayde Motta declarou: “O mito da democracia racial ganhou um simulacro de suporte científico.”

Como bem observou a revista Veja, a “pesquisa obviamente não trata de democracia racial. Ela emprega a genética para comprovar cientificamente e quantificar os níveis de miscigenação que as ciências sociais já haviam esquadrinhado.” Cabe  ao educador ou cidadão sensato, então, refletir sobre as consequências de um país artificialmente dividido entre “brancos e negros” ou constituído apenas por “afrodescendentes”, descendentes de europeus, descendentes de asiáticos e povos indígenas sem mistura genética e mestiços, como quer o Parecer CNE/CP Nº 003/2004.

            Ficam também para reflexão as palavras do Dr. Sérgio Pena em “Retrato Molecular do Brasil, Versão 2001” (disponível no livro Homo brasilis, publicado pela Editora FUNPEC-RP e organizado pelo mesmo): “Pode ser ingênuo de nossa parte, mas gostaríamos de acreditar que, se os muitos brancos brasileiros que têm DNA mitocondrial ameríndio ou africano se conscientizassem disso, valorizariam mais a exuberante diversidade genética do nosso povo, construiriam, no século XXI, uma sociedade mais justa e harmônica.”





quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Introdução

EDUCAÇÃO E DIVERSIDADE ÉTNICA
Marcelo Pereira


Em 17 de junho de 2004, o Conselho Nacional de Educação (CNE) instituiu, através da Resolução Nº 1, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais, a serem observadas pelas Instituições de Ensino que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais pretendem, entre outras coisas, “promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à construção de uma nação democrática.”

Com o intuito de atingir os seus objetivos, a Resolução Nº 1 de 2004  determina que os sistemas de ensino incentivem “pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros, ao lado de pesquisas de mesma natureza junto aos povos indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira” e promovam a ampla divulgação do Parecer CNE/CP 003/2004.


Parecer:  limites e contradições

            Em março de 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou, através do  Parecer CNE/CP Nº 003/2004, diretrizes curriculares nacionais não apenas para a educação das relações étnico-raciais, mas também  para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. A Resolução Nº 1 de 2004  é um desdobramento do Parecer CNE/CP Nº 003/2004.

Consta nas Questões introdutórias do referido parecer que ele “procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente”  (isto é, dos militantes negros). Embora o Parecer CNE/CP Nº 003/2004 destaque que “não se trata de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz européia por um africano, mas de ampliar o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira”, tal parecer é visivelmente negrocêntrico ou afrocêntrico: por um lado, ele pretende impor uma identidade negra ou afro-brasileira aos “pardos” – mestiços que também têm ascendência indígena e/ou europeia; por outro, trata somente das reivindicações dos militantes negros. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, relatora do Parecer CNE/CP Nº 003/2004, é militante negra.  


Educação das Relações Étnico-Raciais


A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo, segundo a Resolução Nº 1 de 2004 , “a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira.”

Não obstante o etnocentrismo negro, o Parecer CNE/CP Nº 003/2004 estabelece alguns princípios que podem orientar os profissionais da educação e os cidadãos realmente comprometidos com os direitos humanos e culturais de todos os brasileiros. Um deles é o princípio de consciência política e histórica da diversidade. Tal princípio deve conduzirà compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas e que em conjunto constroem, na nação brasileira, sua história”.

Que grupos étnico-raciais constituem a sociedade brasileira? Utilizando o conceito de “cor ou raça” e não o de  “grupos étnico-raciais” do Parecer CNE/CP Nº 003/2004, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), órgão oficial responsável pela coleta de dados demográficos, divide a população brasileira da seguinte maneira:  “amarela”, “branca”, “indígena”, “parda” e “preta”.

No seu Atlas geográfico escolar, o IBGE define cor ou raça da seguinte maneira: “Característica declarada pelas pessoas com base nas seguintes opções: branca, preta, amarela (pessoa de origem japonesa, chinesa, coreana etc.), parda (mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça) ou indígena (pessoa indígena ou índia).”

  As pessoas de origem japonesa, chinesa ou coreana se veem em conjunto como “amarelas”, conforme o IBGE as classifica, ou como descendentes de “asiáticos”, segundo a denominação do Parecer CNE/CP Nº 003/2004? Os mulatos, os caboclos e outros mestiços de cor morena se dizem pardos, conforme a classificação do IBGE,  ou “afro-descendentes”, como os denomina o Parecer CNE/CP Nº 003/2004?

Pesquisas do IBGE e do Instituto Datafolha já revelaram que os “pardos” se autodenominam, majoritariamente, “morenos”.  E como os mestiços de origem oriental e branca, por exemplo, se identificam? O Parecer CNE/CP Nº 003/2004 tampouco trata dos mestiços:  além de ignorá-los, deixa por conta das escolas  incluir no contexto dos estudos e atividades” as “contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos”, sem quaisquer orientações. Como lidar com esses problemas?

As pessoas realmente comprometidas com a democracia devem respeitar a maneira como as diferentes populações brasileiras se identificam – o que significa, por outro lado, fazer valer o princípio de fortalecimento de identidades e de direito proposto pelo Parecer CNE/CP Nº 003/2004. Esse princípio deve orientar para  “o desencadeamento de processo de afirmação de identidades, de historicidade negada ou distorcida”.