quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Intromissão norte-americana no Brasil

DICOTOMIA RACIAL E RIQUEZA CROMÁTICA
Antonio Risério


Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant, num texto de 1998, sobre as Artimanhas da Razão Imperialista, examinaram o assunto de modo lúdico e agudo, partindo do princípio de que "o imperialismo cultural repousa no poder de universalizar os particularismos associados a uma tradição história singular, tornando-os irreconhecíveis como tais". E é o que vemos hoje: os Estados Unidos tratando de universalizar as experiências particulares norte-americanas, como se no mundo não houvesse senão aquela made in USA. Em Relativismos Versus Verdade Única, conferência realizada em São Paulo e depois incluída no livro Relativismo Enquanto Visão de Mundo (organizado por Antonio Cícero e Waly Salomão), o antropólogo Ernest Gellner flagrou essa disposição absolutizante já na própria declaração de independência dos EUA, datada do ano de 1776: "Os americanos tendem a absolutizar sua própria cultura. O exemplo mais cômico é, naturalmente, um de seus documentos mais conhecidos, que é o preâmbulo da Declaração de Independência Americana. Ele diz:  '(...) essas coisas que consideramos evidentes (...)', e depois as enumera (aliás, são coisas ótimas): '(...)a vida, a liberdade e a busca à felicidade'. Também tenho esses valores, mas daí a considerá-los evidentes... Ora, a maior parte da humanidade acha-os ininteligíveis, ou paradisíacos, ou heréticos. O que quero dizer é que o resto da humanidade não achava que a busca individualista de metas particulares dentro do respeito pelos outros fosse a condição humana natural - era preciso lutar por isso. E os americanos achavam self-evident. É essa mesma propensão narcísico-absolutizante que se expressa sem pudor no simples e impróprio fato dos norte-americanos chamarem, aos EUA, América, como se eles fossem não um país, mas a própria massa continental do Novo Mundo.

Mas retornemos a Bourdieu e Wacquant, que escrevem: "Hoje em dia, numerosos tópicos oriundos diretamente de confrontos intelectuais associados à particularidade social da sociedade e das universidades norte-americanas impuseram-se, sob formas aparentemente desistoricizadas, ao planeta inteiro". E ainda: "Assim, planetarizados, mundializados, no sentido estritamente geográfico, pelo desenraizamento, ao mesmo tempo que desparticularizados pelo efeito de falso corte que produz a conceitualização, esses lugares-comuns ('no sentido aristotélico de noções ou de teses com as quais se argumenta, mas sobre as quais não se argumenta ou, por outras palavras, esses pressupostos da discussão que permanecem indiscutidos') da grande vulgata planetária, transformados aos poucos, pela instância midiática, em senso comum universal, chegam a fazer esquecer que têm sua origem nas realidades complexas e controvertidas de uma sociedade histórica particular (os EUA), constituída tacitamente como modelo e medida de todas as coisas". E o fato é que esta exportação de modelos e conceitos descontextualizados, como se eles tivessem valor universal, nos atingiu de cheio, transformando parte considerável do ambiente universitário brasileiro numa espécie de MacDonald's de construções ideológicas e sanduíches conceituais alheios. O exemplo brasileiro  aviso  não sou eu quem dá, mas os próprios Bourdieu e Wacquant, impressionados com a nossa rendição político-acadêmica à pressão norte-americana. Um caso típico e acabado de dominação simbólica, alcançada por diversos meios, alguns dos quais de difícil admissão por parte dos submetidos ao novo jugo mental. Especificamente, Bourdieu e Wacquant apontam para recentes leituras da realidade racial brasileira, que tentam dicotomizá-la arbitrariamente segundo o padrão norte-americano, que social e legalmente, não reconhece a existência da figura do mestiço, mas somente de pretos e brancos.

"Em um campo mais próximo das realidades políticas, um debate como o da 'raça' ('em que a particularidade é flagrante e está particularmente longe de ser exemplar) e da identidade dá lugar a semelhantes intrusões etnocêntricas. Uma representação histórica, surgida do fato de que a tradição norte-americana calca, de  maneira arbitrária, a dicotomia entre brancos e negros em uma realidade infinitamente mais complexa, pode até mesmo se impor em países em que os princípios de visão e divisão, codificados  ou práticos, das diferenças étnicas são completamente diferentes e em que, como o Brasil, ainda eram considerados como contra-exemplos do 'modelo norte-americano'. A maior parte das pesquisas recentes sobre a desigualdade etnorracial no Brasil, empreendidas por norte-americanos e latino-americanos formados nos Estados Unidos, esforçam-se em provar que  [o Brasil] não é menos racista do que os outros ... Ainda pior, o racismo mascarado à brasileira seria, por definição, mais perverso, já que dissimulado e negado. É o que pretende, em 'Orpheus and Power' , o cientista político afro-americano Michael Hanchard: ao aplicar as categorias raciais americanas à situação brasileira, o autor erige a história particular do movimento em favor dos Direitos Civis (nos EUA) como padrão universal da luta dos grupos de cor oprimidos. Em vez de considerar a constituição da ordem etnorracial brasileira em sua lógica, essas pesquisas contentam-se, na maioria das vezes, em substituir na sua totalidade o mito nacional da 'democracia racial'... pelo mito segundo o qual todas as sociedades são racistas, inclusive aquelas no seio das quais parece que, à primeira vista, as relações 'sociais' são menos distantes e hostis. De utensílio analítico, o conceito de racismo torna-se um simples instrumento de acusação", escrevem Bourdieu e Wacquant.

Como explicar que um padrão particular tenha se elevado à condição de padrão universal – e que pesquisadores brasileiros tenham engolido tão sofregamente a nova pílula? "O fato de que, no decorrer dos últimos anos, a sociodicéia racial (ou racista) tenha conseguido se 'mundializar', perdendo ao mesmo tempo suas características de discurso justificador para uso interno ou local, é sem dúvida, uma das confirmações mais exemplares do império e da influência simbólicos que os Estados Unidos exercem sobre toda espécie de produção erudita e, sobretudo, semierudita, em particular, através do poder de consagração que esse país detém, e dos benefícios materiais e simbólicos que a adesão mais ou menos assumida ou vergonhosa ao modelo norte-americano proporciona aos pesquisadores dos países dominados", comentam os autores citados. Arrolando ainda, entre outros fatores, a ação de instituições norte-americanas ("Poder-se-ia ainda invocar ... o papel motor que desempenham as grandes fundações americanas de filantropia e pesquisa  na difusão da doxa racial norte-americana no seio do campo universitário brasileiro... a Fundação Rockefeller financia um programa sobre 'Raça e Etnicidade' na Universidade Federal do Rio de Janeir, bem como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Candido Mendes"); a comercialização e a internacionalização  da produção editorial universitária; a militância dos pesquisadores norte-americanos "que vão ao Brasil encorajar os líderes do Movimento Negro a adotar as táticas do movimento afro-americano de defesa dos direitos civis e denunciar a categoria pardo ... a fim de mobilizar todos os brasileiros de ascendência africana a partir de uma posição dicotômica entre 'afro-brasileiros' e 'brancos'. Por fim, Bourdieu e Wacquant  tocam ainda numa tecla importante: "o imperialismo cultural ... há de se impor sempre melhor quando é servido por intelectuais progressistas (ou 'de cor', no caso da desigualdade racial), pouco suspeitos, aparentemente, de promover os interesses hegemônicos de um país".

De um modo ou de outro, o fato é que a tendência para aderir ao figurino norte-americano acabou se impondo entre militantes do Movimento Negro, que assistiu, em seguida, à instituicionalização  de seu esquerdismo "racialista" na universidade pública, com acadêmicos ávidos para demonstrar e exibir alguma "consciência crítica", algum engajamento político e de corresponder ex cathedra a alguma "base social", ainda que minimamente efetiva ou apenas crível. E daí vieram as críticas à mestiçagem, os discursos contra a classificação racial brasileira, as tentativas de ler o Brasil pelo prisma arbitrário do padrão racial dicotômico  em vigor nos Estados Unidos. Nos EUA (e só nos EUA, entre todos os países das Américas), como dissemos, qualquer indivíduo que tenha um mínimo de "sangue negro" é classificado automaticamente como negro. É a chamada "regra de descendência", que não abre espaço algum para a existência de mestiços. (...)


Fonte: "Dicotomia racial e riqueza cromática". In: E. Araújo. Brasileiro, Brasileiros. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura; Museu Afro Brasil, c. 2005, p. 165-167.

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